DRAMATIZAÇÃO FILOSÓFICA DA
ILHA DOS AMORES
Carlos Alfredo do Couto Amaral
Professor de Filosofia da Escola Secundária
Daniel Sampaio
I. Introdução
Pensamos que a motivação da leitura de Os Lusíadas, no contexto
pedagógico, deve ter à partida uma relação evidente com a disciplina leccionada.
Por isso mesmo, inserimos a leitura deste texto na temática da nossa disciplina,
a Filosofia. Pois pretendemos motivar os alunos, primeiro para a leitura duma
obra relevante da cultura portuguesa, e seguidamente para a dramatização e
reflexão filosófica da mesma.
Na realização deste projecto, de dramatização da Ilha dos Amores, não levaremos
em consideração todas as estâncias de Os Lusíadas, mas apenas aquelas que
sirvam os seguintes propósitos:
A) Transmitir a essência da Ilha dos Amores;
B) Poder contar uma “história”;
C) Alcançar os fins da disciplina de Filosofia;
D) Criar uma unidade estética.
Para alcançar estas metas recorremos à estética contemporânea. Para a qual a não
existência duma total fidelidade ao texto, na sua extensão e intenções, permite
no fundo encontrar livremente um fio condutor a partir da fragmentação e
selecção de trechos significativos, de modo a conduzir os alunos actores (e os
espectadores) ao desejo de ler Camões. Devido aos critérios da realização deste
projecto, em cima enunciados, utilizaremos os seguintes excertos: Canto I, 1 e
106; Canto IX, 39, 47, 52, 57, 64, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 75, 76, 79, 83, 84,
89, 91, 92, 93, 95.
II. Os temas fundamentais da Ilha dos Amores
Os elementos temáticos que na ‘Ilha dos Amores’ mais podem servir estes
objectivos são os seguintes: o AMOR, os SÍMBOLOS e a ÉTICA. Façamos uma breve
incursão por estas questões filosóficas.
A) O Amor poético e filosófico
“Trata-se sobretudo de sublinhar, quando a intolerância e a crueldade se
instalaram oficialmente como formas sociais, como o amor é conquista e redenção,
mas é acima de tudo posse e dádiva, e prazer que nenhuma moral tem o direito de
limitar; os actos do Amor são a divinização dos heróis (...)” (Jorge de Sena, in
“Actas da I Reunião Internacional de Camonistas”, Lisboa, 1972, p. 30 e ss)
Desde a antiguidade clássica que o debate acerca do ‘amor’ serviu a meditação
filosófica. A própria definição etimológica da filosofia está marcada por esta
relação (a partir de Pitágoras, o primeiro pensador a classificar-se a si
próprio como filosofo). Assim, na raiz etimológica da “Filosofia” temos o étimo
“FILO”, que significa na língua grega “Amor”, e “SOFIA” que traduzia a
“Sabedoria”. Na sua origem a Filosofia aparece definida como o amor à sabedoria
(ou amizade pelo conhecimento verdadeiro). Isto é, a filosofia procura resolver
o problema humano do DESEJO pela sabedoria integral.
Todavia, a partir de Platão o tema do amor teve outro desenvolvimento.
Considerou este filósofo que, o homem debate-se com o sentimento de uma
incompletude (miséria) que deseja e procura a completudo (fartura). Ou seja, é
pelo amor que se une tudo o que está dividido (em desequilíbrio). Deste modo, a
beleza à qual o amor está associado, traduz também a atracção pelas formas
perfeitas, que despertam a partir dos traços sensíveis. Por exemplo, uma bela
rapariga enquanto imagem sensível suscita igualmente o desejo pela beleza
inteligível. O que quer dizer que, o amor leva de imediato à atracção e noutro
momento à meditação, conduzindo à evocação da forma perfeita da beleza em si.
Com efeito, o que é divino representa para o humano o polo da atracção suprema.
É nesta mesma linha que o próprio Camões, de uma forma poética, aborda o amor no
contexto do Cântico IX de Os Lusíadas.
No entanto, resta investigar se para o nosso poeta interessa, antes de mais, o
amor como resultado das sensações ou aquilo que elas podem evocar: a união do
humano com o divino (cabe aos alunos esclarecem este dilema. O levantamento
destes problemas suscita nos alunos o desenvolvimento das competências inerentes
à investigação e à reflexão filosófica.). Se se defender que a poesia de Camões
está marcado sobretudo pela força das sensações, então teremos que buscar no
hedonismo aristotélico e epicurista o fundamento filosófico para a sua criação
poética.
Não obstante, não devemos esquecer a complexidade desta temática em Camões, como
refere José Valverde:
“O leitor entrou numa ilha celeste, presenciou com surpresa uma cena orgiástica
de ninfas e soldados, e agora tem de compreender que tudo isso era puro símbolo
de uma superior ideia intelectualista, metamorfismo de um ‘conceito’ em que se
conjugam o idealismo platónico, o amor cortês, o ideal cavaleiresco e o fervor
humanístico pelo saber” (José Valverde, Camões, 291).
B) Os símbolos na Ilha dos Amores
No que concerne à temática do símbolo, o que está em causa, é o facto de uma
entidade ser tomada por outra a partir do sinal que alerta para essa outra
realidade oculta. No caso da Ilha dos Amores estamos perante os símbolos da
‘ilha’ e do ‘amor’, entendendo-se ainda outros símbolos como o das ‘ninfas’ e a
descrição natural. Primeiramente, analisamos o símbolo da ‘ilha’, a qual é
considerada em diferentes culturas como representação de um mundo perfeito (a
autentica realidade), assim como é associada às imagens paradisíacas. Mas a
‘ilha’ corresponde ao mundo perfeito que está separada do restante mundo comum,
exigindo: a demanda, a aventura e o esforço para lá se poder chegar. A este
propósito destaquemos uma nota de Zacarias do Nascimento:
“Descrição da ilha dos Amores: “Locus amores de inexcedível requinte”. Conf.
Jorge de Sena, pág. 159. Locus amoenus: lugar tranquilo, agradável. Tópico
retomado da literatura latina. Cenário tranquilo, propicio à fruição da
tranquilidade do espírito, de que fazem parte prados, ribeiros, fontes,
arvoredos, lagos. O Classicismo, tanto o greco-latino como o do Renascimento
(que retoma) escolhe e acentua aspectos belos da Natureza, mas eliminando tudo o
que julga ser acessório, grosseiro vil. O Locus amoenus não é, consequentemente,
cópia da Natureza física, mas uma criação poética que tenta idealizar uma
Natureza num grau máximo da perfeição” (Nota da edição da Plátano de Os
Lusíadas, p. 423).
No que respeita ao ‘amor’, antes de mais, ele é o símbolo da unidade e
articulação entre os diferentes elementos que foram num determinado momento
separados. No entanto, o amor também é símbolo da redenção e superação do
humano, corresponde ao sentimento que destaca os traços que eventualmente mais
aproximam os homens dos deuses. Por seu lado, as ‘ninfas’ representas a
mitologia encantadora em torno da água.
C) A Ética em Os Lusíadas
No que se refere à temática da ética destacasse, nos Lusíadas, uma noção
ética do esforço, que está associada aos temas: da redenção, da superação e da
evolução do ser humano. Por isso mesmo, o prazer para Camões aparece no fim de
um processo como prémio, isto é, corresponde à compensação do esforço (e não
deve estar no início, pois assim o sujeito seria conduzido à preguiça). Quando o
ser humano fica desde novo enredado nas malhas do prazer raramente cria obra de
vulto -- Os jovens estudantes que averigúem e debatam o seu posicionamento face
a este problema --. Vejam-se ainda a este propósito os seguintes versos de Os
Lusíadas:
“Não eram senão prémios que reparte,
por feitos imortais e soberanos,
O mundo co’os varões que esforço e arte
Divinos os fizeram, sendo humanos; (...) (Cant. IX, 91)
(...) Por isso, ó vós que a fama estimais,
se quiserdes no mundo ser tamanhos,
que o ânimo já do sono do ócio ignavo,
que o ânimo, de livre, faz escravo. (Cant. IX, 92)
(...) Porque essas honras vãs, esse ouro puro,
verdadeiro valor não dão à gente.
Melhor é merecê-los sem os ter,
Que possuí-los sem os merecer.” (Cant. IX, 93)
Reparemos agora como Amélia Pais traduz para a prosa estes versos:
“CONSELHOS DO POETA. Por isso, queridos leitores e todos quantos amarem a fama,
procurai despertar do ócio que escraviza, refreai a cobiça e a ambição,
abandonai o vício da tirania. Essas honrarias vãs, o ouro, não dão valor a
ninguém.(...) não é preciso fazer coisa impossíveis, já que querer é poder; se
assim fizerdes, sereis também recebidos nesta ilha de Vénus” (Os Lusíadas em
prosa, p. 69).
Convém, por último, destacar que os deuses em Camões emergem como símbolos
daqueles humanos que através de esforços inumanos se transcenderam. Quanto à
realidade divina em si mesma, tal como o poeta a descreve na simbólica pagã, é
descreditada como uma realidade em si, verifique-se a este respeito o Cântico X
de Os Lusíadas.
III. Etapas do processo de motivação da leitura a partir da dramatização da
Ilha dos Amores de Os Lusíadas
1. O professor encenador deve fazer uma breve apresentação da obra e dos
objectivos, esclarecendo a finalidade da respectiva dramatização. Pede-se por
sua vez aos alunos que efectuem uma primeira leitura com o propósito de a
discutir posteriormente. Sugere-se ainda que eles seleccionem um excerto para
noutro momento o lerem de uma forma criativa.
2. Organizar uma discussão livre através do método da “Tempestade Mental”, onde
cada um toma a palavra e defende o que lhe interessa sem restrições. Cada qual
lê também um excerto dos Lusíadas de uma forma criativa, fazendo a sua primeira
‘performance’. O professor encenador, atento, selecciona alguns dos desempenhos
mais interessantes para os inserir no produto final, depois de trabalhados e
melhorados em função dum projecto de encenação. Desta forma o encenador
desempenha a função de gestor da criatividade do grupo.
3. Sugere-se a utilização da seguinte estratégia para a boa interpretação e
comunicação dramática:
a) Cada aluno actor deve criar uma personagem relacionada com a ilha (ou a nau),
encontrando também um objecto que a caracterize, assim como o vestuário e a
música apropriados. Cada um dos actores terá três minutos para fazer uma
demonstração (como se fosse um ‘vídeo clipe’) de toda a sua ‘performance’.
b) Cada actor deve escolher uma frase do poema (a qual deve ter um sentido em si
mesmo), procurando explorar as seguintes noções: a sensação (sentimento)
dominante; o espaço cénico em que a imagina (sem ser necessariamente a ilha);
qual é o ponto de vista, isto é, quem é que conta essa frase (por exemplo: as
divindades, as ninfas, um marinheiro, um jovem actual, um historiador, etc.)
c) A partir das estâncias dos Lusíadas números: 68, 69, 70, 71, 72, 73, o
encenador distribuiu os versos pela totalidade dos alunos, de forma a obter-se
uma sequência, onde cada aluno pode criar um gesto para associar ao poema.
d) Nas estâncias 92, 93 e 95, o encenador divide os versos a partir de uma
numeração dos alunos, os quais só declamarão na sua vez (por exemplo, a um
hipotético actor é atribuído o número 5, então de cinco em cinco versos será ele
a declamar).
4. Formar grupos com os alunos para o tratamento e investigação dos temas
específicos. Para lá daqueles que são sugeridos pelos alunos e que se revelem
pertinentes, devem-se abordar ainda os seguintes temas (todos eles relacionados
com a filosofia):
A) Análise dos símbolos presentes da Ilha dos Amores (ilha; amor; ninfas...)
B) O amor e beleza sensível (Aristotélico e Epicurista) versus amor e beleza
ideal (Platão e Estóicos).
C) A ética da felicidade como prémio dos grandes esforços humanos.
D) Criação do Argumento para a dramatização dos Lusíadas.
Elaborar uma ficha com alguns dados sobre cada tema. Pede-se aos alunos que na
sua abordagem façam um levantamento das possibilidades de dramatização da obra a
partir do ponto de vista do respectivo tema que investigam.
5. Cada grupo apresenta ao restante elenco a sua investigação sobre o respectivo
tema.
6. A) Efectuar a leitura pública dos excertos do canto IX considerados
fundamentais para a dramatização, cada membro do grupo de teatro deve sugerir
uma forma criativa de leitura e de actuação/encenação.
B) Efectuar um debate que leve: à análise, ao esclarecimento e à interpretação
do canto IX de Os Lusíadas.
7. Dividir os alunos deste projecto pelas personagens e actividade de
dramatização. Criar por exemplo as seguintes personagens:
- Um professor
- Estudantes
- Camões
- Vasco da Gama
- Leonardo (cantando)
- Veloso (jocoso)
- Coro de ninfas
- Coro de marinheiros
8. Apresentar o esboço do argumento. Fazem-se
as sugestões necessárias, de molde a adaptá-lo à finalidade da dramatização,
respeitando no fundamental o texto original.
9. Efectuar os primeiros ensaios com a distribuição do argumento e das
personagens pelos alunos-actores, bem como incentivar uma discussão das
diferentes funções dos restantes alunos: cenógrafos, lumino-técnicos, encenador,
maquilhador, etc..
Outras sugestões para a dramatização:
- Recorrer, no início da narrativa, a alguns
dos preconceitos que tradicionalmente procuravam evitar que se lesse, por
pudor e moralismo, o cântico IX. Alguns surtiam efeito, criando uma mística
da proibição, noutros casos funcionavam como motivação para a leitura de
Os Lusíadas (pois: “o fruto proibido é o mais apetecido”).
- Num alguidar com água colocar uma pequena
caravela de papel a navegar sob a mão de um jovem.
- Formar uma ilha de raparigas como se
fossem uma rocha até que despertam quando chega a nau dos portugueses.
- Alguns actores envolvidos em rolos de pano
de diferentes cores, desenrolam-se e enrolam-se formando uma coreografia,
declamando versos breves.
- Efectuar uma coreografia acerca da
perseguição das ninfas.
- O cenário podes ser constituído a partir
de uma sequência de slides, como por exemplo: “O nascimento de Vénus” de
Botticelli; “O jardim das delicias” de J. Bosch... As restantes imagens
podem ser procuradas pelos alunos encarregados da cenografia.
- Usar música: de Fausto do disco, Por
este rio acima; de Caetano Veloso (com poema de Fernando Pessoa: “Navegar
é preciso, viver não é preciso”; O Navio Fantasma de Wagner; sons de
ondas do mar, citaras, harpas, flautas (por exemplo música indiana de Ravi
Shankar).
- Cada membro do projecto cria uma frase
sugestiva sobre Camões e a Ilha dos Amores, devendo os argumentistas
articulá-las aleatoriamente ou a partir de um nexo descoberto.
Bibliografia
CAMÕES, Luís, Os Lusíadas, Lisboa, Plátano Editora, 1998. (Introdução e
Notas de Zacarias do Nascimento).
PAIS, Amélia Pinto, Para Compreender Os Lusíadas, Coimbra, Fora do Texto,
1988.
PAIS, Amélia Pinto, Os Lusíadas em Prosa, Porto, Areal Editores, 1998.
VALVERDE, José Figueira, Camões, Coimbra, Livraria Almedina, 1982.
Actas da I Reunião Internacional de Camonistas, Lisboa, 1972.
CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain, Dicionário dos Símbolos, Lisboa, Teorema,
1994.
LURKER, Manfred, Dicionário de Simbologia, São Paulo, Livraria Martins Fontes,
1997.
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